Projeto Price

Projeto Price

O projeto foi financiado por um multi-milionário cujo nome foi rasurado nas anotações. Para fins de leitura, vamos chamar este multi-milionário de BO.

7 de janeiro de 1995: O senhor BO entrou em contato comigo a respeito de um projeto que tinha em mente. Sua finalidade era estudar como a mente humana reage diante de situações extremamente estressantes. De início eu estava relutante em aceitar liderar este projeto. Entretanto, o senhor BO me fez uma oferta que eu não pude recusar.

13 de janeiro de 1995: O senhor BO designou sua própria equipe e deu carta branca para o financiamento do projeto. A equipe enviada pelo senhor BO é um tanto quanto diferente. Parecem sempre distantes, não estou certo se estão qualificados para o projeto. Felizmente, recebi autorização de chamar antigos colegas de faculdade para se juntarem a mim. Dos 6 que chamei, apenas 3 aceitaram: Jens Hansen, Isaac Peterson e Maren Pedersdatter. Definimos os parâmetros iniciais do experimento e decidimos iniciar na próxima segunda.

16 de janeiro de 1995: Qual não foi minha surpresa ao saber que o senhor BO nos enviou voluntários para o experimento! Os voluntários eram todos homens, bem vestidos e de boa aparência. Hens e Maren concordaram comigo que aquilo era muito estranho, mas Isaac disse que deveríamos nos preocupar apenas com o experimento, e foi o que fizemos. Introduzimos cada cobaia numa sala preparada e monitoramos seus níveis de oxigênio, seus batimentos cardíacos e sua pressão sanguínea. Começamos devagar, com coisas irritantes do dia-a-dia, como o barulho do trânsito, giz sendo riscado na lousa, dentre outras coisas. Decidimos dividir o dia em sessões de 15 minutos com intervalos de 5 minutos. Nos intervalos, realizamos testes de atenção e concentração. Após 4 horas submetidos aos sons estressantes, as cobaias já demonstravam sinais de cansaço e falta de concentração. Após 6 horas de experimento, já estavam bastante estressados e um deles gritou de forma violenta. Decidimos que já bastava por um dia. A equipe do senhor BO se mostrou bastante competente.

17 de janeiro de 1995: Iniciamos do ponto em que paramos. As cobaias, após uma noite de sono, estavam bem dispostas e prontas para mais 6 horas de experimento. Enquanto preparávamos as cobaias, recebi uma ligação do senhor BO ordenando que fossemos mais rapidamente. Indaguei o motivo, e como resposta recebi um “apenas faça”. Comentei o episódio com meus colegas, e como todos aceitaram, partimos para testes de nível médio. Preparamos questionários sobre conhecimentos gerais para as cobaias e as amarramos nas cadeiras. Cada vez que erravam, recebiam um pequeno choque, apenas o suficiente para ser dolorido. Após 2 horas de experimento, as cobaias apresentavam sinais de cansaço, mas suspeitamos que não se davam por stress, e sim por cansaço mental. Assim sendo, resolvemos tomar uma outra abordagem. Colocamos um “examinador” na sala junto com a cobaia. Cada vez que erravam, eram esbofeteados pelo examinador. O propósito disto era tornar o erro mais “pessoal” para a cobaia, pois se sentiria subjugada. Após 4 horas de experimentos, todos agiam de forma rude, e a mesma cobaia que se mostrou violenta no dia anterior tentou sair de suas amarras e teve de ser sedada.

25 de janeiro de 1995: Após 9 dias, as cobaias já apresentavam sinais de cansaço permanente e estavam sofrendo de insônia. O senhor BO ordenou que a partir de hoje, elas deveriam dormir apenas 1 hora e receber o mínimo de água e comida para mantê-las vivas. Transmiti isso a equipe. Eu e meus colegas estávamos relutantes pois isto não era ético, mas o restante da equipe enviada pelo senhor BO se mostrou a favor. Mesmo com poder de veto, decidi acatar a opinião da maioria. Jens se mostrou extremamente insatisfeito, mas não fez maiores objeções.

27 de janeiro de 1995: Estamos avançando rápido demais. Eu e meus colegas estamos desconfortáveis e Jens já disse que não tem certeza se continuará no projeto. No final do dia, o senhor BO ligou novamente, e ordenou que submetêssemos as cobaias a tortura física pesada. Jens disse que aquilo não poderia continuar e que iria à imprensa. Saiu da sala com muita raiva. Decidi que tiraríamos o final de semana para nos acalmarmos e pensar a respeito.

30 de janeiro de 1995: Decidimos continuar o projeto. Jens não nos deu notícias, provavelmente está pensando se deve continuar. Após estes 2 dias de descanso as cobaias estavam mais calmas e algumas até sorriam. Informamos os procedimentos que seriam realizados e todos aceitaram. Utilizamos novamente o questionário, mas desta vez demos 5 segundos para resposta e utilizamos um cronômetro particularmente barulhento, o que aumentou a pressão em cima das cobaias. Para cada erro, receberiam um choque equivalente ao de um taser policial com duração de 3 segundos. Ao final do dia, estavam todos agitados e duas cobaias agiram de forma violenta. Maren recebeu um pequeno corte no rosto quando uma das cobaias conseguiu soltar um dos braços das amarras, acertando-a. A partir de amanhã, iremos utilizar amarras mais seguras.

6 de fevereiro de 1995: 21º dia de experimento. As cobaias estão a 2 dias sem sequer a 1 hora de descanso, e receberam apenas 1 copo d’água e meio pedaço de pão por dia. Estão tão fracas e abatidas que parecem zumbis. Nenhum sinal de Jens, estamos muito preocupados. Maren me confidencia que também quer abandonar o projeto. A convenci a ficar, mas eu mesmo não acreditei em minhas palavras. Estava muito desconfortável com aquilo tudo. A equipe enviada pelo senhor BO parecia não se abalar.

14 de fevereiro de 1995: Alcançamos um mês de experimento. Jens ainda não se manifestou, e Maren fez seu último contato dia 11. Dizia que tinha uma suspeita em mente em relação à real natureza do experimento. Estava muito nervosa e disse que me contaria tudo na segunda-feira, dia 13. Comuniquei isso a Isaac, que estava começando a se abalar. Decidimos nos focar no experimento. As cobaias começam a apresentar sinais de insanidade. Resolvemos instalar um sistema de monitoramento em seus aposentos. Preparei o relatório mensal e enviei por email ao senhor BO.

20 de fevereiro de 1995: Monitoramos as cobaias por uma semana. Não realizamos as sessões de stress e as alimentamos mais decentemente, além de permitir que dormissem. Algumas comeram, mas nenhuma das cobaias dormiu mais do que 10 minutos, mesmo que isto lhes fosse permitido. Murmuravam coisas sem sentido o tempo todo, e Isaac podia jurar que uma delas, a mesma que havia se manifestado de forma agressiva logo no primeiro dia, havia dito o nome de sua mãe, já falecida, seguido do seu. Isto o deixou severamente abalado, mas apelei para seu bom senso e ele pareceu se acalmar. O senhor BO ligou novamente. Recomeçamos os experimentos.

23 de fevereiro de 1995: Durante uma sessão, uma das cobaias começou a gritar descontroladamente. Se sacudiu com tanta força que quebrou o pulso e saiu da tranca de ferro instalada na cadeira e, com a mão solta e quebrada, começou a bater na própria cabeça com tal força que deixou diversos hematomas e perfurou o olho direito. Não sabemos se ela voltará a enxergar daquele olho. Neste ponto, eu e Isaac estávamos prestes a abandonar o projeto, o que significaria seu fim. A equipe enviada pelo senhor BO percebeu nossa tensão e um deles pediu para conversar comigo após a reunião. Me disse simplesmente que já era tarde demais para sair no momento em que entrei, e perguntou se recebi notícias de Jens e Maren, mas não esperou resposta e saiu como se nada houvesse acontecido. Aquilo me deixou muito assustado. Comentei o fato com Isaac e ele disse que seria melhor se fossemos discretos.

27 de fevereiro de 1995: Não tivemos notícias de Jens e Maren. Estava claro que algo estava acontecendo ali, mas tanto eu quanto Isaac concordávamos que era melhor não comentar mais nada perto da equipe do senhor BO. Isaac me confessou que a mesma cobaia começou a murmurar algo na noite anterior, mas era algo inteligível. Ao aumentar o volume, se espantou ao ver que estava cantarolando uma canção que sua mãe costumava cantar para ele em sua infância. Enquanto observava a cena espantado, a cobaia olhou para a câmera com um olhar insano, como se soubesse que ele a estava observando. Após 30 segundos, a cobaia sorriu de uma forma amedrontadora e voltou a cantarolar, como que o desafiando. Isaac saiu imediatamente da sala de monitoramento e foi para casa. Ao saber disso, o que me restava de ânimo foi por água abaixo, mas tínhamos de continuar. Isaac concordou, e o dia prosseguiu sem maiores incidentes.

1 de março de 1995: Soubemos que uma das cobaias faleceu durante a noite. Ao verificar as gravações vimos que, sem motivo aparente, a cobaia se levantou e começou a recuar contra a parede, como se houvesse algo no quarto com ela. A vigilância do corredor mostrava que ninguém havia sequer passado por lá. Após 15 minutos tremendo contra a parede e implorando para que o que quer que estava lá fosse embora, a cobaia simplesmente caiu no chão, sem vida. Informamos imediatamente o fato ao senhor BO, que ordenou que tudo prosseguisse normalmente. Eu e Isaac podíamos sentir a atmosfera de tensão que a equipe do senhor BO nos causava. Estávamos ambos muito nervosos. Isaac saiu mais cedo, disse que tinha algo a fazer.

6 de março de 1995: Isaac desapareceu. Tenho certeza que foi esta equipe infernal que sumiu com ele, assim como sumiram com Jens e Maren. Estou num ninho de cobras e agora luto pela minha vida. Resolvo verificar as gravações da noite interior. Por volta das 3h da manhã, uma das cobaias começou a dançar. 30 minutos depois, todas estavam dançando exatamente da mesma maneira. Eram movimentos não-naturais, como se fossem marionetes, e todos riam loucamente. Aquilo me deixou num estado de nervos indescritível. Comuniquei a equipe que iria sair mais cedo e que prosseguissem normalmente. Apenas consentiram com seus olhos vazios e voltaram ao trabalho.

6 de março de 1995 - 0h: Estava quase dormindo quando ouço a campainha. Me assustei, imaginei que fosse aquela equipe maldita. Cautelosamente, olhei pelo olho mágico. Qual não foi minha surpresa ao ver Isaac. Imediatamente abri a porta, mas me arrependi logo em seguida. Estava com os mesmos olhos vazios da equipe. Pediu para entrar. Receoso, permiti. Disse que havia encontrado Jens e Maren e que estavam mais calmos e iriam voltar amanhã. Logo em seguida, foi embora. Isto está muito, muito estranho.

7 de março de 1995: Como Isaac (seria mesmo Isaac?) havia dito, Jens e Maren estavam de volta. Jens também tinha os olhos vazios, mas Maren parecia assustada. Talvez o que quer que tenham feito com ela não havia funcionado. Decidi que tentaria conversar com ela durante o dia. Após uma das sessões, disse que queria conversar com ela. Ela olhou para mim muito assustada e disse que sentia muito, mas não podia, e saiu. Fiquei frustrado e olhei pelo vidro duplex para a cobaia. Ela estava sorrindo para mim.

8 de março de 1995: Maren continuava assustada. Jurei a mim mesmo que hoje arrancaria algo dela. Fizemos novamente as sessões. As cobaias não manifestavam mais qualquer sinal de dor diante das torturas. Aumentamos a intensidade dos choques ao maior nível permitido que não causasse uma parada cardíaca. Sequer se mostraram desconfortáveis. Após as sessões, novamente puxei Maren para um canto. Estava muito perturbada, e tudo que pude entender foi “não deixe os portões caírem”. Saiu. Olhei pelo vidro e só então notei que era a mesma cobaia do dia anterior. Posso jurar que a vi murmurar “Olá Erl”. Só meu pai de chamava de Erl, e ele faleceu há muito tempo. Eu estou com medo.

9 de março de 1995: Outras duas cobaias faleceram. Morreram nas mesmas circunstâncias misteriosas da primeira. Isto nos deixou com três: a que havia falado com Isaac, a que havia falado comigo e uma que era a única que não havia manifestado qualquer sinal diferente até então. Tentei novamente falar com Maren, mas agora ela estava com os mesmos olhos vazios dos outros. Eu estou novamente sozinho. Agora as cobaias pareciam não só ignorar a dor, mas pedir por ela. Erravam questões cujas respostas eram óbvias. Coisas como: qual a cor da camisa que você está usando. E erravam com um sorriso no rosto. Em um determinado momento, exatamente 14h, todas as cobaias olharam para leste e até o final do dia nada as fez olhar para outro lado.

10 de março de 1995: Sexta feira. O senhor BO não atende o celular. Prosseguimos com as sessões, que se provaram cada vez mais inúteis. As cobaias parecem ter perdido a necessidade de dormir e de comer. Apenas ficam lá, sorrindo. Após um dia completamente improdutivo, decidi que não trabalharíamos no final de semana. Eu preciso descansar.

Neste ponto as anotações estão todos tremidas e muito difíceis de se ler. Isto é o que foi possível entender ###

13 de março de 1995: É o fim. Estão todos mortos. Ao chegar no centro de pesquisa, a primeira coisa que vi foi uma das cobaias (a que havia falado com Isaac) enforcada e com um sorriso tão distorcido no rosto que me gelou a alma. Imediatamente peguei meu telefone para chamar a polícia, mas ele simplesmente não funcionava. Preocupado com o que restava dos meus antigos colegas de faculdade, peguei um cano que havia próximo a entrada e prossegui. Tudo que encontrei foram corpos mutilados. Num estado de nervos indescritível, adentrei as salas onde realizávamos as sessões. Todas, com exceção da última, estavam vazias. Na última, encontrei para meu completo horror meus três amigos. Isaac estava com [é impossível ler este trecho]. Já perdendo a sanidade, me virei e me deparei com a única cobaia que não havia manifestado nada até então. Olhava para mim com um sorriso no rosto. Preparei o cano, mas ela permaneceu imóvel. Me perguntou como estavam meus amigos. Num acesso de fúria, golpeei seu rosto com o cano com tal força que quebrei seu maxilar. Ela apenas riu. Vou repetir aqui as exatas palavras dela, que me lembrarei até o fim da minha vida: “Os portões caíram, afinal. Sabe quem eu sou? Eu sou aquilo que está dentro de você. Aquilo que estava atrás dos portões. Aquilo que os humanos tentam desesperadamente manter trancado. Eu sou a Insanidade.”. Ao dizer isso, ela arrancou os próprios olhos e os comeu. Vomitei com nojo daquilo. Rindo estericamente, pegou um bisturi do bolso. Preparei para me defender, mas ao invés de me atacar, cortou o próprio abdômen, expondo suas entranhas. Eu me preparei para correr, mas a cobaia me agarrou pelo braço com tal força que pude ouvir os ossos estralando, quase quebrando. Ela murmurou no meu ouvido: “Erl… [não é possível ler este trecho]. Agora que sabe disso, Erl, me diga: qual é o preço?”. Estou escrevendo esta carta, a última carta da minha vida. Agora eu sei qual é o preço. O senhor BO já o pagou. Eu sei o que está por trás de tudo isso. No mais profundo da mente humana está o Caos. E lá, é possível encontrar o significado de tudo. Lá, podemos ver que [não é possível ler este trecho]. Lá, é possível encontrar Deus. Eu encontrei Deus. E ele apenas sorriu.

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